“Dificuldades práticas para engajar pessoas”, pode parecer que criei esse título para chamar sua atenção. Que é um daqueles títulos em que o autor escolhe minuciosamente cada palavra. Entretanto, a verdade é que essas são as palavras utilizadas pela ISO 10018:2020. A norma fala em “Dificuldades práticas para alcançar o engajamento” (em inglês: Practical difficulties to achieve engagement).
Além disso, também pode parecer um pouco desnecessário falar sobre esse assunto. Afinal, todos os dias, a gente vive vários impasses na vida real. É colaborador que não quer tratar NC. Gestor que esquece de coletar e analisar indicadores. Direção que fica apagando incêndios e não trata a raiz dos problemas.
Mas é aí que está o problema. Primeiro, porque a gente também não busca entender melhor esse cenário. Pode pesquisar, você vai encontrar dezenas, centenas (talvez milhares) de cursos sobre “Como Tratar Não Conformidades” ou “Como Gerenciar Indicadores”. Mas quantos sobre “Como Engajar Pessoas” você já viu?
Você não vai enfrentar problemas para encontrar conteúdos sobre ISO 9001. Há milhões de artigos por aí. Mas quando eu publiquei o 1º artigo sobre 10018 aqui no blog, recebi vários feedbacks de pessoas dizendo que não conheciam a norma.
Tudo isso porque o mercado se adequa à demanda, certo? E infelizmente, todo mundo sofre as “dificuldades práticas para engajar pessoas”. Todos os dias. Porém, pouca gente realmente trata esse problema. Poucos profissionais entendem que ele leva a dificuldades maiores e que precisa de soluções mais duradouras, ou seja, sistemáticas.
O que a ISO 10018:2020 lista como dificuldades práticas para engajar pessoas?
A ISO 10018 apresenta 4 dificuldades básicas. A lista está presente na introdução da norma, onde também são apresentadas algumas outras informações. Segundo a norma, essas dificuldades incluem:
– a qualidade tem a reputação de estar ligada à conformidade, ao invés de uma busca coletiva de excelência;
– a qualidade é vista como uma disciplina técnica e não “a melhor forma de fazer as coisas” relevante para todos;
– linguagem e ferramentas podem ser usadas para fazer a qualidade parecer inacessível para aqueles que não foram formalmente treinados;
– profissionais de qualidade muitas vezes não têm as “soft skills” necessárias para mudar o paradigma.
conformidade, ao invés de busca coletiva de excelência
Considero esse um assunto delicado, pois é difícil encontrar uma empresa em que conformidade e busca pela excelência estejam, realmente, balanceados. O que vejo, geralmente, é que as empresas costumam tender mais a uma que a outra.
Quando a empresa foca em conformidade, corre o risco de se tornar ultradocumentalista e engessada. Nesse caso, o que já é feito, já é feito! Não se muda! O processo é um Deus Imutável. É o famoso: “Em time que está ganhando não se mexe”.
Por outro lado, quando a ânsia por excelência é muito grande, a empresa tende a querer ser inovadora em tudo. É uma espécie de excelência forçada, não consistente e, muitas vezes, “desnecessária” ou preciosista. Nesse caso, ela não dá importância à documentação e reina certo caos no ambiente. É o famoso: vamos reinventar a roda!
Porém, o que é similar em ambos os casos é a fuga da realidade. O que quero dizer é que em ambos os casos a empresa prega o que não faz e quer mudar ou manter as coisas “na marra”. Tudo se torna pouco natural e insustentável, afinal, acaba por ignorar como as coisas verdadeiramente fluem (sejam as mudanças ou a necessidade de mudar).
disciplina técnica e não “a melhor forma de fazer as coisas”
É, esse talvez seja um verdadeiro tapa na cara! Mas nós precisamos entender que norma não é sistema de gestão; procedimento não é execução; qualidade não é discurso. Claro, nós buscamos as melhores práticas e seguimos padrões para melhorar as coisas.
Entretanto, a melhor forma de fazer as coisas não está, necessariamente, nas normas e é muito fácil se perder. Qualidade, de verdade, é “tratar NCs”, “gerenciar indicadores” ou “resolver o problema do cliente” e entender se a “empresa é saudável”? Existe um diferença fundamenta de compreensão.
Nós comumente nos confundimos, pois aprendemos tantas técnicas, métodos e modelos que os convencionamos como única realidade, quando deveríamos entender que são apenas ferramentas. Qualidade não é a ISO 9001, não é documentar coisas, não é preencher formulários. Qualidade é encontrar “a melhor forma de fazer as coisas”.
inacessível para aqueles que não foram formalmente treinados
Sempre que alguém me adiciona no LinkedIn, eu deixo uma mensagem de boas-vindas. Eu agradeço a conexão e me apresento melhor. Dias atrás, ao conversar com uma profissional, ela usou uma palavra muito legal, ela disse: “Eu também sou uma Qualitóloga!“.
Olha, eu confesso! Eu amei! Já adotei e usei umas duas ou três vezes. Afinal:
- Quali – de qualidade! A palavra que mais tenho repetido nos meus últimos 5 ou 6 anos.
- ólogo – sufixo, salvo engano de origem grega, que atribui o sentido de profissão.
Gente, não é uma palavra maravilhosa?
Qualitólogo, aquele que trabalha com qualidade! Eu fui professor de língua portuguesa por 3 anos. Estudo qualidade há uns 6, então entendi o significado de cara!
Eu entendi… mas será que meu fornecedor de camisetas entenderia? Será que o seu colaborador da produção ou o seu diretor que “Não são da área da Qualidade” entenderiam?
Muito provavelmente você teria que explicar o significado para eles. Como eu fiz ali em cima, dissecando a palavra. Mas quantas vezes a gente realmente explica? E então vamos aumentando o leque:
- “não conformidade”;
- “RNC”;
- “medição e monitoramento”;
- “partes interessadas”;
- “contexto da organização”;
- “engajamento das pessoas” (opa, das pessoas não, dos “colaboradores”)…
Quando percebemos, somos apenas uma voz na empresa. Uma voz que balbucia palavras difíceis para os interlocutores, mas é difícil mesmo, afinal “as pessoas não se conscientizam”…
não temos as “soft skills” necessárias para mudar o paradigma
Aqui, de início, pensei em traduzir “soft skills”, mas achei que não traduzir ia agregar um pouco mais ao argumento do capítulo anterior, hehe. Mesmo porque esse tópico está, a meu ver, muito ligado a ele.
Soft skills significa algo como “habilidades comportamentais” (não é bem a tradução, mas enfim). E se formos seguir a linha de raciocínio traçada até aqui, podemos dizer que:
- nós não conseguimos conscientizar as pessoas e impulsioná-las a buscar coletivamente a excelência;
- muitas vezes, ignoramos a experiência das pessoas e nos prendemos a fomentar uma disciplina técnica cega;
- nos esforçamos para gastar o vocabulário, conhecer todas as ferramentas disponíveis, mas NÃO nos preocupamos em torná-las acessíveis para quem realmente precisa.
Agora, se quisermos começar a mudar as coisas. Se nos compreendermos como seres humanos que somos, podemos dizer, então, que nós não sabemos nos comportar de forma a engajar as pessoas.
Dificuldades práticas para engajar pessoas: empatia e humanidade
Existem muitos fatores técnicos envolvidos aqui. Não há como (e nem devemos) negar isso. Entretanto, o que nem sempre entendemos é que esse não é um assunto técnico, é um assunto humano.
Isso não significa parar de tratar não conformidades, mas sim mostrar para seu colaborador que ele não está sendo punido por nada. Não significa abandonar a gestão de indicadores, mas mostrar para as pessoas que isso é uma forma de melhorar a empresa para eles.
Acima de tudo, isso não significa seguir uma norma qualquer, mas criar um conjunto de ações que nos ajudem a ser mais empáticos com as pessoas, mais humanos durante a jornada, para, assim, melhorar as rotinas, atividades e a convivência com o outro.
Se nós conseguirmos trilhar esse caminho corretamente, incentivando reciprocidade, seriedade e trabalho consciente, então tudo se refletirá em uma empresa melhor. E uma empresa melhor traz resultados melhores para todas as partes interessadas. (ou, na língua do dia a dia, para todos os envolvidos 😉)